sábado, 29 de fevereiro de 2020

ORAÇÃO DE ATEU

A vida é triste quando pela razão testemunhada.  A vida observada, a vida medida...

Este canal, essas falas, essas páginas em branco em que traduzo meu tempo, diluo dores e tédios, são também preenchidas  por razão da ausência de amigos. Ausência não dos que se foram, porque estes já não seriam ainda que se desfizesse entre nós a distância física. Ficaria a distância do tempo, lapso entre a juventude que sonhava, desde que nos separamos, pra uma meia-idade refém do ordinário cotidiano que  já não ata. Em suma, um abismo animico-temporal! Ou seja, ausência pra esta época da vida. Aliás, amigos para o corpo, até os tenho, talvez sejam os únicos amigos possíveis doravante... feitos pela oportunidade, desfeitos sem questionamentos. Risonhos e amigos, exatamente porque nos damos superficiais e mais não pretendemos, por bom senso!  Por fim, ausência de amigos pra esta coisa dita alma.

Muito!, não tudo aqui!, é o que não me permito falar com ninguém, não por pudor, mas por não pretender estorvar... me apraz mais ser pescado que pular no barco. O que aqui é dito não coube em festas, em ouvido de moças,  se comportou mal em salas de visitas, verteu-se em desgostosas interpretações políticas e entreveros... Aqui vem dar, entre outras coisas, o que calo entre comensais, para passarmos bem com a família, no amor, no passeio...
  Isto aqui é meio que a oração de um ateu, qual se consola no silêncio em torno, que acha reciprocidade em todas as demais orações e conversações coloquiais rotineiras, no sentido em que são igualmente nulas e não levam a nada, senão a enganar tempos vazios. É o bastante! Tenho ao fim, quiçá, um prazer similar ao de um crente. É o bastante!

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

O que você não pode sentir e nem mesmo entender é aquilo que não faz relação a você.

Parece que estou no preciso lugar onde quebra a onda do nada. Tentando sair do mar, chegar na areia e morrer na praia. A corrente covarde me traga pr'um recomeço quando eu já percebi os começos como uma pouco engenhosa armadilha do fins.
A enorme maioria se acostumou a promessas, contratos, apregoações de verdades, justificativas, soluções, explicações, sentenças peremptórias entre certo e errado.... então se perde em matéria de versos, palavras-sensação. Pois a tudo lido tem por vício evocar o compromisso. Isto me soa como quem pedisse a um pássaro que ao longe voa que entrasse em sua gaiola e cantasse sua biografia.

Aquilo que escrevo em certa maneira superei. Ainda que uma grande dor,  estive de fora, ao longe, pude vislumbrá-la a partir de anos de vida! Posso escrever sobre uma sensação entendida como de morte ou mesmo sobre um desejo de morte. Não percebes que isto não é propriamente um suicídio?
Não quer dizer que tenha um compromisso com esta sensação por um prazo determinado, não quer dizer que quando lês eu ainda sinto. Escrever algo e sobre algo não é fixar-me no algo ou revelar uma verdade descoberta, mas tentar transmitir uma visão e a sensação de um dado momento, que é particular de um cume ou de uma depressão do caminho vida.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

meu outro homem chega de noite e bêbado. e gosta de picardias. de insultos, de mortos e de copos mais, cheios de que não pergunta e os vira com sede. acende velas de deboche com minhas crenças, flagrando fragilidades minhas na penumbra. meu outro homem chega de noite e cospe no verso que é minha cara. meu outro homem enrijece o membro na minha frente e o entrega em minha mão, e nossa boca seca em uníssono. faz do meu gozo sua marionete. com vasos dilatados, com fome sincera, olha meus olhos e não teme. ele só é capaz. e de manhã não deixa pegadas, a porta só, esquecida aberta. pegadas não senão as minhas. meu outro homem é lindo e horrível por pura indecência.  se banha lá fora nu no meu quintal, e a lua nos deixa numa silhueta, nos torna um só. meu outro homem é voraz... e eu fico estirado no sofá satisfeito e parece que eu sempre lhe devo em verdade.