quarta-feira, 25 de novembro de 2020

tenha medo da morte não. esse medo é da vida, a última dor é da vida, a ânsia é da vida, a angústia. a morte é a enrustida tranquilidade que todos nós buscamos desapercebidamente.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

os dias fabricados

Repetir o desenho feito sobre os dias em branco é não ter os dias em branco, mas com o rabisco leve de ontem que me guiará os passos de hoje. Como se hoje fosse um papel vegetal posto sobre ontem, em qual traçado eu não devo observar rigorosamente apenas a copia do desenho, mas também o ritmo e o momento de execução de cada traço, devendo sempre começar a cópia a partir do mesmo ponto e também em mesmo ponto concluí-la. Meu dia compete com o outro como se atletas de uma mesma modalidade. Correm numa mesma pista, lado a lado. Os dias passados são um molde em que devem caber os dias seguintes, assim meço meu sucesso, nisto habita meu descanso. Os dias vêm numa esteira industrial em que me empreguei, se algo dá errado no maquinário de que faço parte, com que atuo organicamente, o dia passará intranquilo, a sensação é de desperdício. Participo de um jogo de encaixar movimentos em minutos, preencho as horas e minutos iguais com ações iguais, sou justo e quanto mais justo mais pleno me sinto. Apraz-me ter um modelo! Se há algo que me aborrece em mim mesmo e nesta maneira de seguir?! De toda forma, esta é ainda a minha maneira imperante de seguir, a mais confortável ao que sou. Aliás, a que me faz “ser” ante tanta instabilidade da vida, ante a hipótese de tantas tempestades que temo. “Ser” no sentido “ter constância”! Meus dias são como réguas, termômetros, balanças; enfim, medidores que me informam sempre se algo está fora de ordem (ameaça)... Poderiam talvez ser adesivados com selos do Inmetro. Sim! Eles parecem regidos pela ABNT! Pois sim! Tenho esta sensação de ordem que me conforta, por exemplo, ao fechar o portão de volta à casa, soltar os cães das coleiras, tomar o café... e erguer a cabeça para o relógio da parede da sala antes ou pontualmente às 6h da manhã. A minha angústia é descarrilar, sair do eixo... Meus afazeres são como estações da locomotiva que sou, vou largando como em estações os cães saciados no quintal, meus dentes escovados em minha boca, as crianças na escola, eu no serviço, eu na mesa de almoço, na cama com meu sono dos justos... Um pedaço de imprevisível nisto bole com minhas vísceras, me desarranja. Guardo com apreço a sensação serena de que amanhã repetirá hoje, e sinto que de alguma maneira isto tem dado certo e sido responsável pelo semblante salutar dos meus. A verdade não importa! O que importa é a sensação, a de que o tempo não passa se miramos o relógio, de que eu não envelheço se me olho apenas no espelho dos dias subsequentes, da mesma maneira que as pessoas não envelhecem se as olhamos todos os dias, vivo com sensações e não com verdades. As pessoas só envelhecem na vida quando olhamos fotos antigas delas, mas no meu itinerário não deixei tempo pra nostalgia. O automatismo foi feito para não sentirmos a tragédia humana. Mesmo os aromas das ruas, dos meus caminhos, dos meus destinos costumam se repetir, como fermentando na forma do meu rito os dias producentes. Também voltam a mim, engrenagem deste engenho de viver diariamente, os burburinhos residenciais do meu bairro, os carros mesmos que saem das garagens após o rangido dos portões, ou se os portões lubrificados recentemente já não rosnam a austeridade necessária dos compromissos ou se carros saem outros, tudo apenas informa uma tênue manutenção utilitária, feita justamente para que os horários não sejam perdidos, para que o atraso não reine em lugar da disciplina. Tudo isto constrói a massa que me alimenta a alma, tal é o pão meu de cada dia, pão para o que sou além de matéria. Mais tarde encontrarei com meu fiel cansaço. Ele é como um marido cordato, deita comigo às dez da noite. Assim terei encontrado meu apetite as 13h. Terei meu entretenimento naquele horário de folga, por volta de quando o sol se põe e um arrebol pela janela pinta o canto de meu olho distraído numa outra tela. Aah, este turno delicioso cotidiano em que me estendo com as roupas mais confortáveis para ver bem de fora, bem distante, seguro, as vidas encenadas em que há drama! Ah, mesmo aquela impacienciazinha assídua, com o relógio que parece tantalizar meu cansaço nos minutos finais de serviço, tem de parte minha alguma simpatia. Simpatia de quem conhece e sabe lidar com ela. Simpatia de encontrá-la todos os dias como uma conhecida chata, que o melhor que nos dá é ir embora, sei que ela significa o alívio de agorinha, então já a recebo sem deixar que ela me torça minimamente as expressões faciais, tenho-a comedidamente. Ter uma rotina é segurança dos dias que vêm e quase não vão. Não que sejam de todo magníficos, pois se são ordinários: 1,2,3,4... mas me entregam a sensação de segurança que me é indispensável ao sono e ao viver, não obstante adivinhe o intelecto (este inimigo especulador subversivo) que uma farsa esteja nisto alicerçada: durmo em paz com a tranquilidade que hoje sempre voltará amanhã, e esta sequência de dias permitida pelo acaso, estes meus gestos, apetites, disposições com horas marcadas, esses rituais fazem do acaso – este indiferente - um Deus paternal que aprova este filho digno, que me acolhe em seus braços imperecíveis.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

 O HOMEM QUE COMIA FOTOGRAFIAS


 


era tão participativo que já não me bastava compreender as coisas. isto de entender-lhes então!, mais parecia desperdiçá-las e, ao mesmo tempo, um gesto ingrato para com elas. por isso que dei a comer fotografias. observava-as, sim, algum tempo, e depois, como elas nada mais me diziam aos olhos, eu apertava os dentes um contra o outro, rangendo a ânsia, e era observá-las algum tempo e “nhac!”.


a primeira, se não me falha o paladar, foi de minha querida vovozinha. foi um dia que se procura alguma coisa e encontra outra que faz a primeira virar alguma. dentro da velha caixa, lá estava a minha vovozinha em preto e branco. que pobreza era só tê-la à vista. nhac! o primeiro pedaço foi um tanto... “papel!”, mas depois... não! se fechasse bem os olhos, apertando as pálpebras... sentia diversos sabores, e lembrando as imagens, sentia-me reviver velhos tempos.


é mesmo, lembro que no começo, eu, depois de arrancado alguns pedaços de meus entes queridos, costumava olhar a fotografia para escolher a próxima mordida. das fotografias eu nunca gostei muito dos pedaços de chão, me parecia anti-higiênico mastigá-los. então eu deixava sempre sobrar. ou esfregava num bife e dava para o joaquim maria - cães não ficam doentes de comer coisas do chão ou de comer o chão das coisas. no mais, acho até que joaquim maria gostava de conhecer lugares novos.


a coisa foi tomando uma proporção que dei para comer também os livros, se as palavras, antes palavras depois sabor, me agradavam. se me agradava uma poesia, já era! dente nelas.


ah! eu também não comia eu mesmo em fotos, mas de um tempo comecei a tirar mais e mais fotos minhas e mandar para os amigos com os dizeres no verso: “se sentir saudade me coma!”. alguns me vieram bater à porta com certa aflição urgente. não entenderam bem o recado. entender é tão cruel... mastigar! tive que enxotá-los e a amizade ficou afetada ao ponto que passei mal uma semana, vomitando os pedaços fotográficos desses amigos que houvera comido na oportunidade de enviar-lhes minhas fotos.


no café da manhã era sempre papai, para começar fortalecido o dia.


hoje, joaquim maria ficou só fotografia, e do meu pai não tenho mais negativos para continuar os mesmos dias dispostos de outrora. o chão do quarto está cheio de chãos de tudo que é lugar, e confesso que estranhamente tenho me sentido atraído a comer bifes.