sexta-feira, 13 de novembro de 2020

 O HOMEM QUE COMIA FOTOGRAFIAS


 


era tão participativo que já não me bastava compreender as coisas. isto de entender-lhes então!, mais parecia desperdiçá-las e, ao mesmo tempo, um gesto ingrato para com elas. por isso que dei a comer fotografias. observava-as, sim, algum tempo, e depois, como elas nada mais me diziam aos olhos, eu apertava os dentes um contra o outro, rangendo a ânsia, e era observá-las algum tempo e “nhac!”.


a primeira, se não me falha o paladar, foi de minha querida vovozinha. foi um dia que se procura alguma coisa e encontra outra que faz a primeira virar alguma. dentro da velha caixa, lá estava a minha vovozinha em preto e branco. que pobreza era só tê-la à vista. nhac! o primeiro pedaço foi um tanto... “papel!”, mas depois... não! se fechasse bem os olhos, apertando as pálpebras... sentia diversos sabores, e lembrando as imagens, sentia-me reviver velhos tempos.


é mesmo, lembro que no começo, eu, depois de arrancado alguns pedaços de meus entes queridos, costumava olhar a fotografia para escolher a próxima mordida. das fotografias eu nunca gostei muito dos pedaços de chão, me parecia anti-higiênico mastigá-los. então eu deixava sempre sobrar. ou esfregava num bife e dava para o joaquim maria - cães não ficam doentes de comer coisas do chão ou de comer o chão das coisas. no mais, acho até que joaquim maria gostava de conhecer lugares novos.


a coisa foi tomando uma proporção que dei para comer também os livros, se as palavras, antes palavras depois sabor, me agradavam. se me agradava uma poesia, já era! dente nelas.


ah! eu também não comia eu mesmo em fotos, mas de um tempo comecei a tirar mais e mais fotos minhas e mandar para os amigos com os dizeres no verso: “se sentir saudade me coma!”. alguns me vieram bater à porta com certa aflição urgente. não entenderam bem o recado. entender é tão cruel... mastigar! tive que enxotá-los e a amizade ficou afetada ao ponto que passei mal uma semana, vomitando os pedaços fotográficos desses amigos que houvera comido na oportunidade de enviar-lhes minhas fotos.


no café da manhã era sempre papai, para começar fortalecido o dia.


hoje, joaquim maria ficou só fotografia, e do meu pai não tenho mais negativos para continuar os mesmos dias dispostos de outrora. o chão do quarto está cheio de chãos de tudo que é lugar, e confesso que estranhamente tenho me sentido atraído a comer bifes.


 



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