terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

SOLILÓQUIO

A saudade que eu sentia de alguém, a medida em que o tempo foi passando, 

despiu-se de quem como de um traje a rigor.

Furou a orelha, colocou um brinco de frutas...

Trocou de perfume...

Desceu do salto que ruidoso desfilava na minha cabeça, 

chia uma rasteira nos paralelepípedos de meu centro histórico,

na feira do meu tórax...

Saliva enquanto experimenta com os dedos o frescor de uma tangerina. 

Esta mesma saudade que era uma alma e mal me assombrava

encarnou em quantas outras vidas...

Espalhou-se aspergida por minha cabeça em mil bons olhares...

Distraindo-se em manias, brincadeiras, sonhos frívolos, vícios, conversas...

Nem precisei de exorcista.

Alimentou-se mais saudável, pôs-se  a filosofar...

Até que de "quem era" nem como "alguém" restasse!

Digo, até que a saudade já não soubesse de que era...

Emagreceu...

Dobrou a esquina da rua em que fiquei sozinho,

envelheceu e

confundiu suas rugas nas minhas...

nem nos distingo mais no espelho do banho cotidiano.

Flagro-me sozinho sem faltas!

E sua massa ressequida que esculturava a iminência do choro em meu rosto

dissolveu num branco esquecimento...

numa indiferença que vai longe a se perder de vista,

líquida se espalha por cima de todos os planos...

...e que talvez um dia, sem me deter um passo sequer, 

diga-lhe "oi!" no passeio

sem me virar a cabeça

ocupada em chegar à padaria.


Os versos que uma inspiração escreveria

 ansiosos por carnavais consigo

pularam sozinhos e caíram em ser eu hoje em casa,

sem a formalidade de se fantasiarem poesia...

trajam apenas o pijama dos solilóquios 

que a mais ninguém devem entendimento. 







Estilhaços nostálgicos

Fragmentos de afetos antigos, da infância e juventude quebrada, chocam-se contra minha alma, chegam no veículo de uma imagem, um cheiro, uma melodia... Não são lembranças íntegras que se localizam, não se trata da falta específica de alguém, nem de uma época como um todo. São cacos de peças irreconhecíveis, irreconstruíveis... Parecem saudade de sensações! Como sei que se tratam de afetos antigos? Há saudade nelas. Elas não me fazem querer o presente e nem o futuro. Quando esses fragmentos me atingem, eu tento me concentrar para montar a imagem inteira, a peça inteira... e reconhecer de que é exatamente a saudade que me causam. Mas em geral não consigo encontrar e nem continuar sentindo aquele gosto bom de vida. Isto tem acontecido demais comigo. Suponho que um vazio presente é como uma tela em branco para que mínimas cores se projetem numa pintura nunca realista. É como ter chupado uma laranja e depois lembrar dela numa textura na língua, ou seja, por parte muito pequena do que ela me propiciou... Será que aquilo que lembro inteiriço na saudade: parentes que se foram, brincadeiras, amigos distantes... - já se desgastou enquanto sentimento, já não me provoca, e então sinto falta não dos objetos inteiros, mas de sensações que estes me causavam? Talvez eu tenha descoberto que a saudade não se faz de figuras inteiras, mas de pedaços. Então não consigo mas ilustrá-las como saudades de um parente falecido. Por exemplo, é possível que eu sinto saudade de uma emoção causada durante uma brincadeira que tive com meu tio, e até então eu nomeava de "saudades de meu tio". Pois assim seria mais fácil expressá-la ante os demais e ante mim mesmo. Nesta hipótese, eu precisava da imagem do meu tio para transformar tal sentimento em algo inteligível, me propiciando uma sensação de compreensão, então parecia saciar determinadas ansiedades que surgem associadas a tais sensações, e também me possibilitaria comunicar tal sentimento com mais facilidade, me entregando uma sensação de comunidade com outras pessoas que manifestassem assim também suas nostalgias. Penso também que compreendendo de uma tal maneira uma determinada coisa, se perde por ela algumas esperanças e se nutre outras de maneira conveniente. 

É como se eu tivesse a saudade de sentir de uma tal forma o mundo, e não a saudade de um mundo. Não tenho então a ilusão de poder reviver, mesmo porque se eu pudesse reviver aquilo que se passou comigo, está vivência não tiraria de mim a mesma apreciação. Da pra entender? Em suma, não é falta da coisa, mas do que ela parcialmente me causou de sensação! 

Tenho sentido isto muito recorrentemente. Por exemplo, hoje vi a imagem de um cara todo enfaixado na internet e foi como um caco de algo... De quando eu ficava doente?... De alguma ocasião quando me machuquei ou alguem se machucou? Que sensação seria essa resgatada a partir da imagem? Uma esperança de cura? A atenção que eu recebia quando adoecido? Que objeto me causou tal sensação? Ainda posso despertá-la? Não devo tentar sentir algo assim novamente pois não seria possível? Morreu algum dos ingredientes necessários - inocência - para que eu sentisse de tal maneira? 

Sinto falta da vontade que eu tinha da rua, dos amigos, do outro, do entusiasmo com terminar o almoço e retomar uma brincadeira, o prazer de começar a sonhar com coisas antes de dormir, num mundo de faz de conta... Bem, isto tem acontecido, e eu sempre tento mergulhar mais e tentar reconstruir o vivido pra ver se é algo que posso reencontrar na vida, ou pra me entender melhor... Mas é como num sonho em que as coisas que você quer lhe escapam e você desperta antes de conseguir alcançá-las.

A verdade é o fim da liberdade da interpretação.