Fragmentos de afetos antigos, da infância e juventude quebrada, chocam-se contra
minha alma, chegam no veículo de uma imagem, um cheiro, uma melodia... Não são
lembranças íntegras que se localizam, não se trata da falta específica de
alguém, nem de uma época como um todo. São cacos de peças irreconhecíveis,
irreconstruíveis... Parecem saudade de sensações! Como sei que se tratam de
afetos antigos? Há saudade nelas. Elas não me fazem querer o presente e nem o
futuro. Quando esses fragmentos me atingem, eu tento me concentrar para montar a
imagem inteira, a peça inteira... e reconhecer de que é exatamente a saudade que
me causam. Mas em geral não consigo encontrar e nem continuar sentindo aquele
gosto bom de vida. Isto tem acontecido demais comigo. Suponho que um vazio
presente é como uma tela em branco para que mínimas cores se projetem numa
pintura nunca realista. É como ter chupado uma laranja e depois lembrar dela
numa textura na língua, ou seja, por parte muito pequena do que ela me
propiciou... Será que aquilo que lembro inteiriço na saudade: parentes que se
foram, brincadeiras, amigos distantes... - já se desgastou enquanto sentimento,
já não me provoca, e então sinto falta não dos objetos inteiros, mas de
sensações que estes me causavam? Talvez eu tenha descoberto que a saudade não se faz de figuras inteiras, mas de pedaços. Então não consigo mas ilustrá-las como saudades de um parente falecido. Por exemplo, é possível que eu sinto saudade de uma emoção causada durante uma brincadeira que tive com meu tio, e até então eu nomeava de "saudades de meu tio". Pois assim seria mais fácil expressá-la ante os demais e ante mim mesmo. Nesta hipótese, eu precisava da imagem do meu tio para transformar tal sentimento em algo inteligível, me propiciando uma sensação de compreensão, então parecia saciar determinadas ansiedades que surgem associadas a tais sensações, e também me possibilitaria comunicar tal sentimento com mais facilidade, me entregando uma sensação de comunidade com outras pessoas que manifestassem assim também suas nostalgias. Penso também que compreendendo de uma tal maneira uma determinada coisa, se perde por ela algumas esperanças e se nutre outras de maneira conveniente.
É como se eu tivesse a saudade de sentir de uma
tal forma o mundo, e não a saudade de um mundo. Não tenho então a ilusão de poder reviver, mesmo porque se eu pudesse reviver aquilo que se passou comigo, está vivência não tiraria de mim a mesma
apreciação. Da pra entender? Em suma, não é falta da coisa, mas do que ela
parcialmente me causou de sensação!
Tenho sentido isto muito recorrentemente. Por
exemplo, hoje vi a imagem de um cara todo enfaixado na internet e foi como um
caco de algo... De quando eu ficava doente?... De alguma ocasião quando me
machuquei ou alguem se machucou? Que sensação seria essa resgatada a partir da imagem? Uma esperança
de cura? A atenção que eu recebia quando adoecido? Que objeto me causou tal sensação? Ainda posso despertá-la? Não devo tentar sentir algo assim novamente pois não seria possível? Morreu algum dos ingredientes necessários - inocência - para que eu sentisse de tal maneira?
Sinto falta da vontade que eu
tinha da rua, dos amigos, do outro, do entusiasmo com terminar o almoço e
retomar uma brincadeira, o prazer de começar a sonhar com coisas antes de
dormir, num mundo de faz de conta... Bem, isto tem acontecido, e eu sempre tento
mergulhar mais e tentar reconstruir o vivido pra ver se é algo que posso
reencontrar na vida, ou pra me entender melhor... Mas é como num sonho em que as coisas que você quer lhe
escapam e você desperta antes de conseguir alcançá-las.
Saudades são atos desesperados de nossas mentes para manter lembranças vivas.
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