quarta-feira, 22 de agosto de 2018

CASA DE BELCHIOR

a minha memória é um imóvel que remete a uma casa velha assombrada: no primeiro pavimento há um brechó cheio de quinquilharias que se em grande parte não estão perdidas é porque não encontram em mim interesse de procurá-las.

gosto de me sentar ao pé da escada que dá ao segundo pavimento, lá onde os conhecidos viram hóspedes. ouço daqui debaixo eles discutirem no hall quanto à qualidade das estalagens. os inquietos abrem e fecham portas e estão sempre a me propor uma festa aqui embaixo... se digo que não há espaço, sugerem que eu jogue as tralhas fora! 

por vezes, aqui do primeiro degrau, se estou frágil, torturam-me falas ríspidas que acho escutar compondo discursos que me diminuem... dói, se estou sensível, até mesmo se os ouço arrastar as mobílias de cá pra lá... estes chatos sem quais não vivo! insistem em dizer que tenho de me organizar, como devo pensar, o que devo aproveitar e o que devo pôr fora... quando se vão, por vezes digo "graças a deus!" mas eles mesmos quase sempre vão sem dizer nada, nem fazem barulho de partida no corredor. o último que, indo, avisou, foi um amor. veio, em verdade, me pedir para ajudar na bagagem, pois as malas pesavam demais. eu, com a pressa de me livrar do sentimento, levei um tombo e rolei pelos degraus. todo quebrado, fiquei por meses de cama e com a loja fechada. mas nunca troquei as lâmpadas que queimadas deixam escura a escada. 

quando é dia, gosto de me sentar aqui no primeiro degrau e me pôr a mirar a massa que minha miopia faz das peças. olho então para estes utensílios: vejo a moda ultrapassada numa camisa, almofadas encardidas, um sofá virado pra parede... - aquele mesmo! em que, sentada,  uma família palpitava a vida ou assistia passivamente os personagens coloridos que os entretinham de suas existências caladas em preto e branco. ah! as panelas em que minha avó cozinhava... ventiladores que aliviavam os verões que a gente atravessava. 

levanto, pego no guarda-roupa de minha irmã-jovem um casaco-velho que ali deixo esquecido até que um inverno lembre, então lembro também o calor que sentia o menino desta morada... "aah! veja!" - digo à minha solidão com certo entusiasmo encantado - os sapatos de meu pai calçar pro trabalho!... mas de maneira diferente, entristecido, não digo nada ao ver, em cabides, os vestidos de minha mãe, trajando agora o ar estático da casa... ele está tão próximo, tão aqui na minha frente. 

dizia que gosto de perder meus olhos nessas tralhas e gosto também de pensar que escodem preciosidades muito particulares. dentro daquela cômoda, quem sabe?, fotografias numa caixa de sapatos. ou sobre esta mesma mobília, por trás da foto no porta-retratos... não haverá outra? quem seria? e no bolso daquela calça que um dia esteve suada... uma moeda de cruzeiro? melhor se achasse a cédula de um barão... um barão que um dia roubei, e devolvi àquela prateleira ali que na cozinha de minha avó ficava... quem sabe? ainda assim, curiosidade instigada, nem sempre me apetece mexer nessas diversidades... pensem! tenho medo também de levar picada de algum escorpião, sei lá, uma aranha...  atrás do vestido florido de minha mãe, suspeito a víbora da ternura desbotada ou da ironia da alegria de flores estampadas! esses bichos que se escondem atrás das heranças, das coisas deixadas na inutilidade de existirmos. 

penso que estas primeiras a se darem aos olhos, estas que estão na superfície do recente, como a blusa de manga, azul-marinho  que minha mãe utilizou semana passada para ir ter com deus... penso que estas coisas escondam outras por tanto tempo, que o presente um dia se colida com o passado num terremoto, num rearranjar deste comércio ou mesmo numa simples espanada. 

fato é que poucas coisas me servem mais do que tristeza, saudade e também servem o alívio de ver coisas duras passadas! este jogo-de-chá, essa xícara vazia do café que meu avô tomava... vez ou outra arranco delas até mesmo um riso raro, cada vez mais caro, que brilha em desarmonia com tudo na casa de belchior... 

ah! entre tantas coisas guardadas: a velha cama sustenta o sono deste presente, já a escrivaninha me serve o estar acordado e sozinho... algumas dessas esqueço por não utilizá-las ou simplesmente porque escurece... no apaga e acende dos dias que passam, o Sr. Chronos - oportunista - com suas mãos de vento e seu gosto esquisito me leva algo amiúde. não sei na verdade se está me roubando ou se deixa uns trocados no caixa, nem sei o que leva ou se paga preço justo. ora! pois se tudo, quando não falta colocá-las, se encontra em antigas etiquetas de preço esmaecidas, sujas... não sei ao certo os valores e os majoro ou diminuo de maneira completamente arbitrária, sendo o árbitro o sentimento. 

fato é que, no final das contas, não dou por falta de muito da parte  que é inanimada! pois se já não quero nada desde que estou livre e posso me mover no escuro dessa casa a mim acostumada, posso derrubar tudo... pouco se me diz o caráter comercial e o sucesso enquanto negócio. hoje faz mais estrondo o sumiço de uma foto de meu pai do que o tombo da estante pesada. mas... por mais que uma angústia quebre os presentes de casamento, como as louças que viviam atrás de um vidro guardadas, por mais que uma raiva vocifere e bata o martelo de meu pai - como quando na infância de castigo no quarto - contra a penteadeira, deixando a madeira gravada, ou que eu faça outro tipo de pirraça em frente ao espelho para ver minha cara enrugada de mágoa e tempo, ainda que quebre o frasco de perfume amarelo de minha avó, sobre o piso, espalhando o cheiro de tudo que foi pelo vazio que resta... nada! nada fará com que se movam os que estão aposentados no porão... até lá, a escada escura, a porta sempre cerrada, nenhuma luz atravessa nas frestas. o que resta deles é já não terem uma casa de belchior, é só em mim fazerem sua pousada... 

já não há escândalo quando me olhando depois do banho o vejo no espelho da penteadeira herdada. a apatia desenha seu rosto, e ele se questiona, confuso, tateando na fórmica as marcas de uma ira infantil: "serei aquele menino que lá fora brincava?" que devolveu o barão, enquanto Chronos - que é rico - não devolve nada! e se hesito do que vejo, quanto a ser um homem maduro apesar do grisalho brilhando o molhado, mais ainda duvido, entre peças deslocadas, daquilo que visto. aquilo que torna a questão outra, a encher a memória de eco: "será toalha ou mortalha isto em que me seco?" 

Nenhum comentário:

Postar um comentário