quinta-feira, 4 de julho de 2019

o amor não existe

Com relação ao amor, não há recompensa maior em o praticarmos do que nisto o estarmos inventando, construindo-o e não exclusiva e necessariamente o descobrindo, menos ainda agindo sob uma sua clara regência, divina e antecessora à nossa própria existência. 

Que uma outra parte não retribua ao amante seus "investimentos", não é o total do que se quer importar, pois a reciprocidade é apenas o que se espera a curto prazo. A qualquer modo, amar lhe retribui com a engenhosa construção de um mundo melhor: ao fazer do outro tal importância em sua vida, o amante esta agindo inconscientemente ante a necessidade de fundamentar a crença num mundo menos selvagem, egoísta, egocêntrico, incivil... O amante representa: sozinho, à noite, o objeto de amor é enaltecido, para causar-se aparente desinteresse, pois se feito em total particularidade. Não há amor sem representarmos tal gênero teatral: ator-plateia. Amantes, não percebemos aí o terreno que seria de pesadelos, caso não fosse dominado pela heroica imagem do ser amado e do próprio amor. Sim! Apagamos as luzes e inauguramos este mundo amoroso, altruísta, a despeito de toda claridade vivida! - Isto sim é o que é! E não que tal mundo maravilhoso exista terceiro e esteja sujeito a ser encontrado por merecedores, tampouco que - por outro lado - seja algo nítido, tal grandeza impossível de se ignorar; portanto, com qual rocha todos tenham de dar inevitavelmente no caminho-vida. Não! Trata-se de algo que, não obstante seu caráter inventivo, pode ser crido, ou construído, se investido num determinado terreno. Um favorável terreno à uma necessidade de "entendimento da vida", talvez fosse então melhor chamá-la de "necessidade de desentendimento". Qual necessidade queira desentender obviedades demasiadamente fortes, duras e claras, tais como: "a indiferença do universo"; "a finitude da vida" - em outras palavras,  o amante se propicia, ator e plateia-distraída, um mundo em que o amor reina; ou seja, sob qual reino ele também concorre à sorte de ser o centro, a razão de outro viver. Não é mesmo provável que o seja para um e outro? Oh, santo consolo! Oh, pretensão! 

A nossa recompensa maior, enfim, é podermos assim, com flagráveis gestos de afeto, constituirmos provas da existência do amor. Este abstrato remédio para o fato de termos consciência. Em suma, atos amorosos são antes a gestação, a renovação, transformação, invenção do amor. "Atos de amor desinteressado" são argumentos facilmente refutáveis. Quem se interessaria, no entanto, a advogar contra, mover contra si a ira dos românticos? Quem seria tão desagradável em nome de uma suposta "Verdade"?  Não o faria antes em nome de um suposto rancor? Por que caluniar todos os interesses humanos-individuais indiscriminadamente? Ora, porque a civilização não sobreviveria sob a popularidade desta visão! Porque as desrazões são pilares, são itens de liga a conformar uma massa! Afinal, que ânimos violentos a esperança no amor não acalenta e põe para dormir o sono dos justos? O amor é o efeito de uma peça teatral, filho de uma necessidade, parido pela humanidade, resposta a uma atenta audição do silêncio do sentido universal, uma obra de arte suntuosa! Não um nosso Deus Imperador, Pai... Pois sua paternidade seria incompetente a nos educar com a dureza necessária à suportarmos ter consciência da vida. Ele se parece mais com um santo ocupando um nicho de existir, preenchedor de uma falta grave! Ele é antes nosso fruto! 

Um teatro?! - ouço indignados. Respondo-os com outra pergunta: Supõem que tal caráter de arte diminui o amor em nobreza? Por certo que acostumamos a divinizá-lo. Ainda precisamos acreditá-lo Deus ou podemos contemplá-lo humano sem degradá-lo, quebrá-lo como um peso que cai do céu sob a lei de nossa gravidade racional? Ora!, para o endeusamento do amor, para a fé no amor, torna-se indispensável o teatro "noturno" desapercebido. A crença na cena fictícia é infinitamente mais importante à saúde da alma do que a verificação de uma indiferença universal e a investigação de nosso ego, eis justamente os elementos que o espetáculo contraria para converter-nos de potenciais apáticos - céticos habitantes de uma vida insignificante - em efetivos entusiastas - devotos do Amor. 

Se "amor" é um termo antigo, se antecede nossa geração neste sentido e também conceitualmente, também o faz a linguagem, sem inferir, tal caráter de antecedência, que ambos sejam impassíveis a um processo de reafirmação e alteração. Em linhas conclusivas: O amor é fruto não da copa da árvore, mas da sombra que ela projeta no caminho-vida, sem o que este seria intransitável. Sombra em que descansamos nossos olhos da luz. O amor não existe, logo, é imperioso fazê-lo.

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